A notícia mais antiga que se tem da capoeira na cidade de Sorocaba é a edição do Código de Posturas da Câmara Municipal, datado de 1850, e que trata, em seu artigo 151, da proibição dessa luta. O enunciado do artigo é o seguinte:
“Toda a pessoa que nas praças, ruas, casas públicas, ou em qualquer outro lugar tão bem público praticar ou exercer o jogo denominado de Capoeiras ou qualquer outro gênero de luta, sendo livre será preso por dois dias, e pagará dois mil reis de multa, e sendo cativa será preso, e entregue a seu senhor para o fazer castigar naquela com vinte cinco açoites e quando não faça sofrerá o escravo a mesma pena de dois dias de prisão e dois mil réis de multa” [1].
Desse texto legal se depreende que os legisladores sorocabanos, que refletiam a mentalidade da classe dominante, conheciam da existência da capoeira e que a mesma era (ou poderia ser) praticada por brancos e negros, homens livres e escravos; não sendo, portanto, exclusividade de uma classe específica. Outro aspecto importante é que a prática da capoeira já estava relacionada com o aspecto lúdico, eis que era conhecida como jogo, embora fosse reconhecida como luta, conforme explicita o próprio texto da lei: “...ou qualquer outro gênero de luta...”. Também é interessante notar que a intenção de punir era irrestrita (não obstante as punições aos homens livres fossem mais brandas), o que pode significar que a prática da capoeira era considerada nociva não somente porque dela poderia se utilizar o escravo a fim de combater a opressão. Desse modo é questionável até mesmo a concepção de que a capoeira tenha servido exclusivamente de luta do escravo pela sua libertação.
As leis municipais de Sorocaba repressivas à prática da capoeira continuaram sendo editadas nas Posturas Municipais durante as décadas subseqüentes. Em 1865 o tópico referente à proibição da capoeira figurou no artigo 127:
“Toda e qualquer pessoa que em praças, ruas, ou outro qualquer lugar exercer o jogo denominado capoeiras, ou qualquer outra luta, será multado em 4$ e dois dias de prisão [2]”.
O texto mais sucinto e genérico não discrimina os participantes do jogo da capoeira, nem mesmo distingüe a penalização, permanecendo, no entanto, a concepção da prática como jogo. Em 1871, o artigo 73 do Código de Posturas da Cidade de Sorocaba apresenta o seguinte texto:
“Jogar capoeiras ou qualquer genero de luta em publico: penas, 4$ de multa e 2 dias de prisão [3]”.
Já em 1882 o termo “capoeiras” deixa de figurar no texto legal:
“Art. 72. É prohibido jogar pelas ruas e lugares públicos qualquer espécie de jogos ou luta, os infractores incorrerão na multa de vinte mil réis e cinco dias de prisão”. [4]
A imprensa sorocabana do século XIX registrou inúmeros eventos relativos a valentões e desordeiros, algumas evidências a lutas, sem que houvesse, entretanto, uma descrição clara desses eventos e que indicasse nomes de capoeiristas. Uma notícia interessante, colhida no Diário de Sorocaba, em 1887, diz:
"Carteira da Polícia
À ordem do sr. delegado de polícia, foi a 16 do corrente recolhido à cadeia João de Almeida, vulgo Brizolla, por provocar desordens.
—À mesma ordem, no mesmo dia e pelo mesmo motivo foi recolhido o preto Antônio José da Silva, que trouxe mais agravante de, no corredor do mosteiro de São Bento fazer um grande rolo.
Ahi está no que dão os valentões" [5].
A palavra rolo, que os dicionários atuais apresentam como sendo sinônimo de confusão ou perturbação da ordem, era, no século XIX, comumente associada a tumultos provocados pelos capoeiras ou por suas maltas. Artur Azevedo, na opereta O barão de Pituaçu, narra a conversa de um capoeira:
José: — Não é partido político, não sinhô. Como político, eu sou republicano. É partido de capoeirage. Eu sou guaiamu.
Bermudes: — Tu é o quê, moleque do diabo?
José: — Guaiamu, legítimo guaiamu, de princípios. Esse partido é a facção mais adiantada da flor da gente. Quando houver rolo, hei de convidar o Sinhô Bermudes.
Bermudes: — Apois.
José: — Verá como eu sei entrar bonito. (Fazendo uns passes de capoeira.)
Bermudes:— Pra lá, moleque! [6]
A mesma conotação parece ter a palavra rolo em Pernambuco, no século XIX, segundo a informação de Mário Sette:
Acompanhando o desfile das bandas musicais do Recife desde os primeiros anos da segunda metade do século XIX, o nosso capoeira era, no dizer de Mário Sette, figura obrigatória à frente do conjunto "gingando, piruteando, manobrando cacetes e exibindo navalhas. Faziam passos complicados, dirigiam pilhérias, soltavam assobios agudíssimos, iam de provocação em provocação até que o rolo explodia correndo sangue e ficando os defuntos na rua". (Recife, Pernambuco, 2004).
No começo do século XX as notícias sobre desordeiros e indisciplinados (neste último caso, soldados – das armas ou da polícia), armados de navalhas é constante. A navalha, segundo Melo Morais Filho, era uma das armas preferidas pelos capoeiristas.
A navalha e um cacete, que nunca excede de cinqüenta centímetros, preso ao pulso por uma fina corda de linho, eram-lhe as armas prediletas, nunca fazendo uso das de fogo [7].
Dentre as notícias de portadores de navalha, como arma, há a de um soldado “indisciplinado” que foi preso em Sorocaba. Eis a notícia:
"Indisciplinado
Hontem, pelas 4 e 45 da tarde o praça do destacamento local de nome Francisco Cândido dos Santos, nº 111, da 4ª Companhia do 3º batalhão, sendo reprehendido pelo Commandante, revoltou-se contra este e, puchando por uma navalha, desafiou a todos que o prendessem. O Commandante, então, ordenou sua prisão o que foi conseguido a muito custo. O soldado Marcos Antônio Moreira foi ferido com uma navalhada pelo soldado indisciplinado. O sr. dr. Delegado fez lavrar auto de prisão em flagrante e vae instaurar o competente processo" [8].
Na década de 1920 as notícias sobre a capoeira em Sorocaba aparecem com mais clareza, informando, com alguns detalhes, sobre a existência do jogo e da prática dessa luta. Uma das publicações nos jornais sorocabanos alerta para a existência de um barbeiro no início do século XX, cujo salão estava localizado na rua Direita (hoje boulevard Doutor Braguinha), e que seria um “capoeira ‘desconjuntado’”. É esta a nota:
Meus reparos
Assisti aos festejos do 13 de Maio. Estiveram assim... Parabéns ao Daniel de Moraes, a quem se deve o não ter ficado “em branco”, a data. Vendo passar os manifestantes, conduzidos pela palavra do Ramiro Parreira, vieram-me á mente scenas dos 13 de Maio de alguns annos atraz, uns 20 talvez, época em que tínhamos aqui diversos oradores fogósos entre os homens de côr. Destes o mais enthusiasmado e verborrhagico era o popular Benedicto Gostoso, mulato escuro, physionomia viva, cabello encaracolado e repartido “de banda”, capoeira “desconjuntado” e barbeiro de profissão. Era proprietário de um salão alli na rua Direita onde hoje se ergue um sobradinho, e á porta lia-se em um cartaz dom letras enormes:
SALÃO DO NORTETHESOURA SEM PONTANAVALHA SEM CORTE
Mas se o Gostoso era hábil no desbastar uma gaforinha, os seus maiores êxitos eram numa tribuna popular a Treze de Maio. Ante a multidão ávida dos seus arroubos oratórios, tomava attitudes empolgantes e “soltava o verbo”: “Os escravos, meus senhores, vinham para o Brasil em grandes ‘trasatraticos’”. Mais adeante: “O dr. Antônio Bento, senhores, era um homem tão importante, mas tão importante mesmo, que nem devia ser “doutor” mas sim ‘coronel da Guarda Nacional’”. E por ahi seguia. K.D.T." [9]
O articulista acima, que assina por iniciais, reportou-se a fato ocorrido cerca de 20 anos antes, o que nos remete a data aproximada de 1907. Benedicto Gostoso era residente e estabelecido em Sorocaba. É provável que outros capoeiristas tenham sido seus contemporâneos nessa mesma cidade.
Em 1914 é veiculada na imprensa sorocabana uma nota ligando a capoeira com a prática de desordens, ou, em outras palavras, a capoeira como prática comum de desordeiros:
"Notas policiaes
(...) Foram presos hoje as 10 ½ por estarem promovendo graves desordem na Rua do Votorantim, os incorrigíveis valientes, Olympio Monteiro e Antônio Francisco da Silva (vulgo Grão de Bico) sendo que este armado de uma enorme pernambucana tentou ferir o primeiro. Mas Olympio num zig-zag de verdadeiro capoeira soube desviar os golpes contra elle dirigidos e em sua defesa descascou no “purungo” do “Grão de Bico” a cacetadas." [10]
Ainda sobre a década de 1920 mais duas notícias da imprensa escrita autorizam a afirmação da inquestionável existência de capoeiras em Sorocaba. Uma delas, trata de um sutil comentário do jornalista acerca de fato policial de ordem doméstica:
"Factos policiais no Bom Jesus
Jovita da Silva levou á autoridade do districto, queixa seu marido, que a esmurra. Jovita declarou á autoridade que, por sua vez, enfrenta o marido, passando-lhe rasteiras. Se é assim, não há de que zangar-se a Jovita, que se diverte em capoeiragem com o inexperto marido..." [11]
Mesmo que a própria nota não afirme a prática da capoeira, antes condiciona o comentário à informação prestada pela queixosa; o texto serve para demonstrar que, ao menos no senso comum, em Sorocaba existia uma vaga noção do que seria a capoeira: uma luta (usada como defesa, talvez), em que se utiliza a habilidade de golpes de perna, especialmente a rasteira.
A outra notícia é mais esclarecedora, fornecendo alguns outros dados, a despeito de ter redação parcimoniosa:
"Delegacia RegionalBrincadeira desastrada
No páteo da estação Sorocabana os operários Joaquim Diniz Costa e Orlando di Fogni brincavam de “capoeira”, cada qual empunhando sua faca, quando por uma rasteira errada ambos cahiram, ferindo se também cada qual com sua faca.
A polícia teve conhecimento do facto." [12]
Dessa notícia conclui-se que a capoeira em Sorocaba era uma luta associada à disputa de dois oponentes (por inferência, não havia disputa coletiva – um grupo contra outro ou porfia entre duplas, trios etc...). O fato de ser um desafio de habilidades e não uma desavença é o que se depreende do termo “brincadeira”, utilizado pelo redator da notícia. Também se observa que o jogo da capoeira aparentemente não era acompanhado por música. O uso de golpes de pés, como a rasteira, é outra informação presente, bem como o fato de estar sendo a capoeira brincada por operários, um dos quais, provavelmente, de origem italiana. A preferência das classes populares pela capoeira é reconhecida pelo Mestre Pastinha:
"Não vai muito longe o tempo em que a Capoeira sofria séria repressão por parte das autoridades que não visavam, evidentemente, terminar com a Capoeira, mas, evitar que indivíduos de mau caráter dela se valessem para a prática de agressões e desordens, pois, o aprendizado da capoeira congregava as classes mais humildes do povo." [13]
A partir do surgimento de novos documentos, de outras informações, a história da capoeira em Sorocaba começa a tomar forma e apontar para outros horizontes. Fugindo da debilidade das discussões regionalistas, esses fatos contribuem para a compreensão do etos e das relações sociais e étnicas que se desenvolveram na cidade de Sorocaba, além de fornecer elementos interessantes para a própria história da capoeira. A capoeira deve ser estudada e entendida como um fenômeno antropológico, o qual só foi gestado e evoluiu por uma necessidade humana conjugada com o tempo e o espaço.
Assim, entender a existência da capoeira num local é compreender a vasta complexidade das etnias que contribuíram para a sua formação, a expressão ritualística do gestual – tão próprio das tribos bantus – que caracteriza uma procura por uma identidade; a busca pela perfeição dos movimentos como forma de destaque e status social (o capoeira acaba ganhando a sua fama através das suas habilidades demonstradas e provadas na roda de capoeira); a exclusão social que forçou as classes sociais mais baixas a buscarem divertimentos – como a capoeira – por não ter acesso a outras formas de lazer...
A aparente falta de uma sistemática perseguição policial, durante a República Velha, ao contrário do que se deu em outras localidades, sobretudo no Rio de Janeiro, demonstra certa tolerância com esse costume. Porém, durante o Império a iniciativa de combater o exercício da capoeira em Sorocaba partiu dos próprios legisladores. É uma história que se desvenda diariamente e que no mesmo ritmo se reescreve.
07 de setembro de 2004
Bibliografia
Almeida, Aluísio de. Sorocaba: três séculos de história. Itu, Ed. Ottoni, 2002.
Areias, Almir das. O que é capoeira. 2ª ed. São Paulo, Ed. Brasiliense, 1984.
Araújo, Paulo Coelho de. Abordagens sócio-antropológicas da luta/jogo capoeira: A transformação de uma atividade guerreira numa atividade lúdica. Publismai, 1997.
Azevedo, Artur. O barão de Pituaçu: opereta em quatro atos, 1887.
Cavalheiro, Carlos Carvalho. "Apontamentos para a história da capoeira em Sorocaba". A Nova Democracia. Rio de Janeiro, nº 18, maio de 2004.
Morais Filho, Alexandre José de Melo. Festas e tradições populares do Brasil. Brasília, Conselho Editorial do Senado, 2002.
Pastinha, Vicente Ferreira, mestre. Capoeira Angola. 2ª ed., 1968.
Pinsky, Jaime. A escravidão no Brasil. Ed. Global.
Recife – Pernambuco. Capoeiras de ontem, passistas de hoje. Disponível em: http://www.recife.pe.gov.br/especiais/brincantes/7b.html. Acesso em: 25 de janeiro de 2004.
Notas
1. O texto dessa lei é muito similar ao de outras leis em várias localidades, editadas do começo a meados do século XIX. É o caso da Postura Municipal da Câmara Municipal da cidade de São Paulo, datada de 1833, citada por Paulo Coelho de Araújo.
2. Câmara Municipal de Sorocaba. Posturas da Câmara Municipal da cidade de Sorocaba acompanhadas do regulamento par o cemitério da mesma cidade. São Paulo, Tipografia Imparcial, 1865.
3. Câmara Municipal de Sorocaba. Código de Posturas da Câmara Municipal da cidade de Sorocaba. Sorocaba, Tipografia Americana, 1871.
4. Câmara Municipal de Sorocaba. Código de Posturas da Câmara Municipal da cidade de Sorocaba com regulamentos para a Praça do Mercado e Cemitério, Annexos. Sorocaba, Tipografia Americana, 1882.
5. Diário de Sorocaba. 18 de outubro de 1887, p.03.
6. Azevedo, Artur. O barão de Pituaçu : opereta em quatro atos, 1887.
7. Morais Filho, Alexandre José de Melo. Festas e tradições populares do Brasil. Brasília, Conselho Editorial do Senado, 2002.
8. Cruzeiro do Sul, 29 de julho de 1909, p.2. Notícia encontrada pela historiadora Adilene Ferreira Carvalho Cavalheiro.
9. Cruzeiro do Sul, 18 de maio de 1927, nº 6151, p.2.
10. Diário de Sorocaba, 21 de janeiro de 1914, nº 10, p.1.
11. Cruzeiro do Sul, 03 de abril de 1927, nº 6116, p.1
12. Cruzeiro do Sul, 08 de fevereiro de 1927, 6072, p.4.
13. Pastinha, Vicente Ferreira. Capoeira Angola. 2ª ed., 1968.
* Escritor, historiador e pesquisador do folclore paulista. Sócio efetivo da Comissão Paulista de Folclore (IBECC/UNESCO). Autor dos livros: Folclore em Sorocaba (1999) e Descobrindo o folclore (2003). Texto enviado em colaboração à Jangada Brasil.
“Toda a pessoa que nas praças, ruas, casas públicas, ou em qualquer outro lugar tão bem público praticar ou exercer o jogo denominado de Capoeiras ou qualquer outro gênero de luta, sendo livre será preso por dois dias, e pagará dois mil reis de multa, e sendo cativa será preso, e entregue a seu senhor para o fazer castigar naquela com vinte cinco açoites e quando não faça sofrerá o escravo a mesma pena de dois dias de prisão e dois mil réis de multa” [1].
Desse texto legal se depreende que os legisladores sorocabanos, que refletiam a mentalidade da classe dominante, conheciam da existência da capoeira e que a mesma era (ou poderia ser) praticada por brancos e negros, homens livres e escravos; não sendo, portanto, exclusividade de uma classe específica. Outro aspecto importante é que a prática da capoeira já estava relacionada com o aspecto lúdico, eis que era conhecida como jogo, embora fosse reconhecida como luta, conforme explicita o próprio texto da lei: “...ou qualquer outro gênero de luta...”. Também é interessante notar que a intenção de punir era irrestrita (não obstante as punições aos homens livres fossem mais brandas), o que pode significar que a prática da capoeira era considerada nociva não somente porque dela poderia se utilizar o escravo a fim de combater a opressão. Desse modo é questionável até mesmo a concepção de que a capoeira tenha servido exclusivamente de luta do escravo pela sua libertação.
As leis municipais de Sorocaba repressivas à prática da capoeira continuaram sendo editadas nas Posturas Municipais durante as décadas subseqüentes. Em 1865 o tópico referente à proibição da capoeira figurou no artigo 127:
“Toda e qualquer pessoa que em praças, ruas, ou outro qualquer lugar exercer o jogo denominado capoeiras, ou qualquer outra luta, será multado em 4$ e dois dias de prisão [2]”.
O texto mais sucinto e genérico não discrimina os participantes do jogo da capoeira, nem mesmo distingüe a penalização, permanecendo, no entanto, a concepção da prática como jogo. Em 1871, o artigo 73 do Código de Posturas da Cidade de Sorocaba apresenta o seguinte texto:
“Jogar capoeiras ou qualquer genero de luta em publico: penas, 4$ de multa e 2 dias de prisão [3]”.
Já em 1882 o termo “capoeiras” deixa de figurar no texto legal:
“Art. 72. É prohibido jogar pelas ruas e lugares públicos qualquer espécie de jogos ou luta, os infractores incorrerão na multa de vinte mil réis e cinco dias de prisão”. [4]
A imprensa sorocabana do século XIX registrou inúmeros eventos relativos a valentões e desordeiros, algumas evidências a lutas, sem que houvesse, entretanto, uma descrição clara desses eventos e que indicasse nomes de capoeiristas. Uma notícia interessante, colhida no Diário de Sorocaba, em 1887, diz:
"Carteira da Polícia
À ordem do sr. delegado de polícia, foi a 16 do corrente recolhido à cadeia João de Almeida, vulgo Brizolla, por provocar desordens.
—À mesma ordem, no mesmo dia e pelo mesmo motivo foi recolhido o preto Antônio José da Silva, que trouxe mais agravante de, no corredor do mosteiro de São Bento fazer um grande rolo.
Ahi está no que dão os valentões" [5].
A palavra rolo, que os dicionários atuais apresentam como sendo sinônimo de confusão ou perturbação da ordem, era, no século XIX, comumente associada a tumultos provocados pelos capoeiras ou por suas maltas. Artur Azevedo, na opereta O barão de Pituaçu, narra a conversa de um capoeira:
José: — Não é partido político, não sinhô. Como político, eu sou republicano. É partido de capoeirage. Eu sou guaiamu.
Bermudes: — Tu é o quê, moleque do diabo?
José: — Guaiamu, legítimo guaiamu, de princípios. Esse partido é a facção mais adiantada da flor da gente. Quando houver rolo, hei de convidar o Sinhô Bermudes.
Bermudes: — Apois.
José: — Verá como eu sei entrar bonito. (Fazendo uns passes de capoeira.)
Bermudes:— Pra lá, moleque! [6]
A mesma conotação parece ter a palavra rolo em Pernambuco, no século XIX, segundo a informação de Mário Sette:
Acompanhando o desfile das bandas musicais do Recife desde os primeiros anos da segunda metade do século XIX, o nosso capoeira era, no dizer de Mário Sette, figura obrigatória à frente do conjunto "gingando, piruteando, manobrando cacetes e exibindo navalhas. Faziam passos complicados, dirigiam pilhérias, soltavam assobios agudíssimos, iam de provocação em provocação até que o rolo explodia correndo sangue e ficando os defuntos na rua". (Recife, Pernambuco, 2004).
No começo do século XX as notícias sobre desordeiros e indisciplinados (neste último caso, soldados – das armas ou da polícia), armados de navalhas é constante. A navalha, segundo Melo Morais Filho, era uma das armas preferidas pelos capoeiristas.
A navalha e um cacete, que nunca excede de cinqüenta centímetros, preso ao pulso por uma fina corda de linho, eram-lhe as armas prediletas, nunca fazendo uso das de fogo [7].
Dentre as notícias de portadores de navalha, como arma, há a de um soldado “indisciplinado” que foi preso em Sorocaba. Eis a notícia:
"Indisciplinado
Hontem, pelas 4 e 45 da tarde o praça do destacamento local de nome Francisco Cândido dos Santos, nº 111, da 4ª Companhia do 3º batalhão, sendo reprehendido pelo Commandante, revoltou-se contra este e, puchando por uma navalha, desafiou a todos que o prendessem. O Commandante, então, ordenou sua prisão o que foi conseguido a muito custo. O soldado Marcos Antônio Moreira foi ferido com uma navalhada pelo soldado indisciplinado. O sr. dr. Delegado fez lavrar auto de prisão em flagrante e vae instaurar o competente processo" [8].
Na década de 1920 as notícias sobre a capoeira em Sorocaba aparecem com mais clareza, informando, com alguns detalhes, sobre a existência do jogo e da prática dessa luta. Uma das publicações nos jornais sorocabanos alerta para a existência de um barbeiro no início do século XX, cujo salão estava localizado na rua Direita (hoje boulevard Doutor Braguinha), e que seria um “capoeira ‘desconjuntado’”. É esta a nota:
Meus reparos
Assisti aos festejos do 13 de Maio. Estiveram assim... Parabéns ao Daniel de Moraes, a quem se deve o não ter ficado “em branco”, a data. Vendo passar os manifestantes, conduzidos pela palavra do Ramiro Parreira, vieram-me á mente scenas dos 13 de Maio de alguns annos atraz, uns 20 talvez, época em que tínhamos aqui diversos oradores fogósos entre os homens de côr. Destes o mais enthusiasmado e verborrhagico era o popular Benedicto Gostoso, mulato escuro, physionomia viva, cabello encaracolado e repartido “de banda”, capoeira “desconjuntado” e barbeiro de profissão. Era proprietário de um salão alli na rua Direita onde hoje se ergue um sobradinho, e á porta lia-se em um cartaz dom letras enormes:
SALÃO DO NORTETHESOURA SEM PONTANAVALHA SEM CORTE
Mas se o Gostoso era hábil no desbastar uma gaforinha, os seus maiores êxitos eram numa tribuna popular a Treze de Maio. Ante a multidão ávida dos seus arroubos oratórios, tomava attitudes empolgantes e “soltava o verbo”: “Os escravos, meus senhores, vinham para o Brasil em grandes ‘trasatraticos’”. Mais adeante: “O dr. Antônio Bento, senhores, era um homem tão importante, mas tão importante mesmo, que nem devia ser “doutor” mas sim ‘coronel da Guarda Nacional’”. E por ahi seguia. K.D.T." [9]
O articulista acima, que assina por iniciais, reportou-se a fato ocorrido cerca de 20 anos antes, o que nos remete a data aproximada de 1907. Benedicto Gostoso era residente e estabelecido em Sorocaba. É provável que outros capoeiristas tenham sido seus contemporâneos nessa mesma cidade.
Em 1914 é veiculada na imprensa sorocabana uma nota ligando a capoeira com a prática de desordens, ou, em outras palavras, a capoeira como prática comum de desordeiros:
"Notas policiaes
(...) Foram presos hoje as 10 ½ por estarem promovendo graves desordem na Rua do Votorantim, os incorrigíveis valientes, Olympio Monteiro e Antônio Francisco da Silva (vulgo Grão de Bico) sendo que este armado de uma enorme pernambucana tentou ferir o primeiro. Mas Olympio num zig-zag de verdadeiro capoeira soube desviar os golpes contra elle dirigidos e em sua defesa descascou no “purungo” do “Grão de Bico” a cacetadas." [10]
Ainda sobre a década de 1920 mais duas notícias da imprensa escrita autorizam a afirmação da inquestionável existência de capoeiras em Sorocaba. Uma delas, trata de um sutil comentário do jornalista acerca de fato policial de ordem doméstica:
"Factos policiais no Bom Jesus
Jovita da Silva levou á autoridade do districto, queixa seu marido, que a esmurra. Jovita declarou á autoridade que, por sua vez, enfrenta o marido, passando-lhe rasteiras. Se é assim, não há de que zangar-se a Jovita, que se diverte em capoeiragem com o inexperto marido..." [11]
Mesmo que a própria nota não afirme a prática da capoeira, antes condiciona o comentário à informação prestada pela queixosa; o texto serve para demonstrar que, ao menos no senso comum, em Sorocaba existia uma vaga noção do que seria a capoeira: uma luta (usada como defesa, talvez), em que se utiliza a habilidade de golpes de perna, especialmente a rasteira.
A outra notícia é mais esclarecedora, fornecendo alguns outros dados, a despeito de ter redação parcimoniosa:
"Delegacia RegionalBrincadeira desastrada
No páteo da estação Sorocabana os operários Joaquim Diniz Costa e Orlando di Fogni brincavam de “capoeira”, cada qual empunhando sua faca, quando por uma rasteira errada ambos cahiram, ferindo se também cada qual com sua faca.
A polícia teve conhecimento do facto." [12]
Dessa notícia conclui-se que a capoeira em Sorocaba era uma luta associada à disputa de dois oponentes (por inferência, não havia disputa coletiva – um grupo contra outro ou porfia entre duplas, trios etc...). O fato de ser um desafio de habilidades e não uma desavença é o que se depreende do termo “brincadeira”, utilizado pelo redator da notícia. Também se observa que o jogo da capoeira aparentemente não era acompanhado por música. O uso de golpes de pés, como a rasteira, é outra informação presente, bem como o fato de estar sendo a capoeira brincada por operários, um dos quais, provavelmente, de origem italiana. A preferência das classes populares pela capoeira é reconhecida pelo Mestre Pastinha:
"Não vai muito longe o tempo em que a Capoeira sofria séria repressão por parte das autoridades que não visavam, evidentemente, terminar com a Capoeira, mas, evitar que indivíduos de mau caráter dela se valessem para a prática de agressões e desordens, pois, o aprendizado da capoeira congregava as classes mais humildes do povo." [13]
A partir do surgimento de novos documentos, de outras informações, a história da capoeira em Sorocaba começa a tomar forma e apontar para outros horizontes. Fugindo da debilidade das discussões regionalistas, esses fatos contribuem para a compreensão do etos e das relações sociais e étnicas que se desenvolveram na cidade de Sorocaba, além de fornecer elementos interessantes para a própria história da capoeira. A capoeira deve ser estudada e entendida como um fenômeno antropológico, o qual só foi gestado e evoluiu por uma necessidade humana conjugada com o tempo e o espaço.
Assim, entender a existência da capoeira num local é compreender a vasta complexidade das etnias que contribuíram para a sua formação, a expressão ritualística do gestual – tão próprio das tribos bantus – que caracteriza uma procura por uma identidade; a busca pela perfeição dos movimentos como forma de destaque e status social (o capoeira acaba ganhando a sua fama através das suas habilidades demonstradas e provadas na roda de capoeira); a exclusão social que forçou as classes sociais mais baixas a buscarem divertimentos – como a capoeira – por não ter acesso a outras formas de lazer...
A aparente falta de uma sistemática perseguição policial, durante a República Velha, ao contrário do que se deu em outras localidades, sobretudo no Rio de Janeiro, demonstra certa tolerância com esse costume. Porém, durante o Império a iniciativa de combater o exercício da capoeira em Sorocaba partiu dos próprios legisladores. É uma história que se desvenda diariamente e que no mesmo ritmo se reescreve.
07 de setembro de 2004
Bibliografia
Almeida, Aluísio de. Sorocaba: três séculos de história. Itu, Ed. Ottoni, 2002.
Areias, Almir das. O que é capoeira. 2ª ed. São Paulo, Ed. Brasiliense, 1984.
Araújo, Paulo Coelho de. Abordagens sócio-antropológicas da luta/jogo capoeira: A transformação de uma atividade guerreira numa atividade lúdica. Publismai, 1997.
Azevedo, Artur. O barão de Pituaçu: opereta em quatro atos, 1887.
Cavalheiro, Carlos Carvalho. "Apontamentos para a história da capoeira em Sorocaba". A Nova Democracia. Rio de Janeiro, nº 18, maio de 2004.
Morais Filho, Alexandre José de Melo. Festas e tradições populares do Brasil. Brasília, Conselho Editorial do Senado, 2002.
Pastinha, Vicente Ferreira, mestre. Capoeira Angola. 2ª ed., 1968.
Pinsky, Jaime. A escravidão no Brasil. Ed. Global.
Recife – Pernambuco. Capoeiras de ontem, passistas de hoje. Disponível em: http://www.recife.pe.gov.br/especiais/brincantes/7b.html. Acesso em: 25 de janeiro de 2004.
Notas
1. O texto dessa lei é muito similar ao de outras leis em várias localidades, editadas do começo a meados do século XIX. É o caso da Postura Municipal da Câmara Municipal da cidade de São Paulo, datada de 1833, citada por Paulo Coelho de Araújo.
2. Câmara Municipal de Sorocaba. Posturas da Câmara Municipal da cidade de Sorocaba acompanhadas do regulamento par o cemitério da mesma cidade. São Paulo, Tipografia Imparcial, 1865.
3. Câmara Municipal de Sorocaba. Código de Posturas da Câmara Municipal da cidade de Sorocaba. Sorocaba, Tipografia Americana, 1871.
4. Câmara Municipal de Sorocaba. Código de Posturas da Câmara Municipal da cidade de Sorocaba com regulamentos para a Praça do Mercado e Cemitério, Annexos. Sorocaba, Tipografia Americana, 1882.
5. Diário de Sorocaba. 18 de outubro de 1887, p.03.
6. Azevedo, Artur. O barão de Pituaçu : opereta em quatro atos, 1887.
7. Morais Filho, Alexandre José de Melo. Festas e tradições populares do Brasil. Brasília, Conselho Editorial do Senado, 2002.
8. Cruzeiro do Sul, 29 de julho de 1909, p.2. Notícia encontrada pela historiadora Adilene Ferreira Carvalho Cavalheiro.
9. Cruzeiro do Sul, 18 de maio de 1927, nº 6151, p.2.
10. Diário de Sorocaba, 21 de janeiro de 1914, nº 10, p.1.
11. Cruzeiro do Sul, 03 de abril de 1927, nº 6116, p.1
12. Cruzeiro do Sul, 08 de fevereiro de 1927, 6072, p.4.
13. Pastinha, Vicente Ferreira. Capoeira Angola. 2ª ed., 1968.
* Escritor, historiador e pesquisador do folclore paulista. Sócio efetivo da Comissão Paulista de Folclore (IBECC/UNESCO). Autor dos livros: Folclore em Sorocaba (1999) e Descobrindo o folclore (2003). Texto enviado em colaboração à Jangada Brasil.
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