O VELHO FÉLIX E SUAS "MEMÓRIAS DE UM CAVALCANTI"
Fonte: FREYRE, Gilberto. O Velho Félix e suas "memórias de um Cavalcanti". Rio de Janeiro: José Olympio, 1959. 142p.
No tempo de Félix a capoeiragem ostentava ainda todo o seu viço; e da Rua da Jangada e Gameleira estavam sempre descendo rêdes não só de bexiguentos como de feridos. Rêdes brancas de mortos. Rêdes vermelhas de gente esfaqueada e gemendo: quero água, quero água! Mal começara a campanha do Inspetor José de Lima e dos seus soldados de facão rabo-de-galo contra os reis a faca de ponta protegidos e até compadres de José Mariano e de outros políticos importantes; gente arranchada pelos mucambos e "quadros" de São José, de Santo Amaro, do Coculo, da Aldeia do Quatorze, da ilha das Ostras, dos Sete Mucambos, do Pombal, do Lucas.
A capoeiragem eram então uma fôrça a serviço da política partidária, tão intensa no Recife do século XIX. O burgo lìricamente comparado pelo poeta a Veneza:
"Veneza americana boiando sôbre as águas"
Era naqueles dias e tem sido quase sempre antes uma Florença que uma Veneza. Florença americana ardendo no fogo das revoluções, das lutas entre partidos, das revoltas de cavalgados contra Cavalcantis, dos combates entre bianchi e neri. Se a capoeiragem é, com pretende Adolfo Morales de Los Rios Filhos, "uma criação dos fracos - o negro e o mestiço - contra o forte, isto é, o branco", onde ela se apurou melhor que no Recife de cavalgados contra Cavalcantis: que nesta nossa Florença americana de cabras afoitos e de negros arreliados, ao serviços de vagas reivindicações políticas, encarnadas ora por um Pedroso, ora por um Nunes Machado ou por um José Mariano e a encobrirem aspirações sociais também um tanto imprecisas, turvadas por muito ressentimento de natureza pessoal, mas no fundo sociais?
Capoeiras negros e mulatos, cabras ligeiros na arte da rasteira, do rabo-de-arrais, do arrastão, no manejo do cacête, da navalha, da faca de ponta, tornaram-se guarda-costas não só de homens do govêrno mais violentos como de políticos oposicionistas mais irrequietos. Os capoeiras do Recife, como os do Rio, eram quase sempre mulatos de gaforinha, andar gingado, lenço encarnado no pescoço. Por debaixo da camisa, raro era o que não levasse oração fechando-lhe o corpo às balas da polícia e às facas dos outros cabras. Às vêzes ostentavam tatuagens no peito, no braço ou noutras partes do corpo: corações, signo-salmão, âncoras, sereias e nomes de mulheres. Quase todos gostavam de sua branquinha ou aguardente de cana; de seu violão; de ostentar seu dente de outro; e todos tinham nomes de guerra pitorescos: Canhoto, Sabe-Tudo, Bode-Ioiô, Pé-de-Pilão, Rabo-de-Arraia, Bentinho do Lucas, Nascimento Grande.
Nascimento Grande foi o último grande capoeira do Recife: morreu há três quatro nos, já velho e doente, no Rio de Janeiro, num sítio de Jacarepaguá onde o acolhêra José Mariano Filho. Passara da Monarquia à República; eu próprio ainda ovi, com olhos de menino de onze anos, seguindo como guarda-costas o carro triunfante - carro aberto, a capota arriada - em que o General Dantas Barreto, duro, pequeno e de pince-nez, entrou em 1972 no Recife ao som da Vassourinha:
"Salvai, salvai, querido general !"
http://www.bvgf.fgf.org.br/frances/obra/livros/pref_brasil/o_velho.htm
http://www.bvgf.fgf.org.br/portugues/obra/livros/pref_brasil/o_velho.htm
OTRA CITA: http://www.bvgf.fgf.org.br/portugues/obra/artigos_imprensa/velho_felix.htm
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