viernes, 31 de octubre de 2008

UM GOVERNADOR COLONIAL E AS SEITAS AFRICANAS

O Governo de José César de Menezes não foi dos menos eficientes que já teve Pernambuco, embora as iniciativas e os melhoramentos empreendidos pelo seu sucessor, D. Tomás José de Mello, tenham ofuscado um pouco os títulos ao justo reconhecimento a que aquele tem direito. Bastará recordar a ajuda militar de Pernambuco a Santa Catarina então ameaçada por tropas espanholas; a. prisão de José Gomes, o Cabeleira, bandoleiro que se constituíra no terror da própria zona da mata (é interessante observar que a notícia oficial de prisão do bandido contém trechos em que se notam semelhanças de frase com a conhecida cantiga do "Fecha a porta, gente, Cabeleira aí vem"); a reforma da ponte do Recife, com a reconstrução e aumento do número das "casinhas" em que se vendiam miudezas, situadas ao longo da ponte; e a atitude liberal e firme, que em certa ocasião tomou, a favor de pretos escravos, aos quais queriam certos fanáticos tolher o exercício de seu culto. É verdade que o governador não parecia - ou, pelo menos, não queria perceber que se tratava de atos religiosos os que os negros praticavam, pois acentua o caráter de "danças", isto é, de divertimento, das reuniões dos escravos. Mas quem quer que conheça um pouco do que hoje nos resta desses atos de ritual religioso dos africanos, dançados ao som de "ilus" e "ingomes", não terá dúvida, pela leitura dos documentos, em reconhecer neles referências precisas a "terreiros" e "pegis".

Diz José Cézar de Menezes em ofício de 1778 ao Ouvidor da Comarca de Olinda (que abrangia o termo do Recife), Antônio José Barroso Pereira de Miranda Leite, que tivera ciência da prisão de "Pretos que faziam bailes com batuques" e ordenava que fizesse "logo soltar aos ditos pretos, pondo-os em liberdade", pois estavam autorizados por ele, governador, a realizar suas danças "Devo dizer a Vossa Mercê que aos ditos pretos lhes concedido licença para fazerem os seus bailes nos arrabaldes dessa Vila (do Recife), não só por não ser cousa que eu Page 2
inovasse, como também pelo antiquíssimo costume em que se achavam, facultado pelos meus
Exmos. antecessores e aprovado por todo o povo desta Praça". É verdade, acrescentava ele,
que o Ouvidor não ignorava "o despotismo que alguns clérigos fanáticos e religiosos Barbadinhos obraram nessa vila, entrando pelas casas dentro, arrombando camarinhas, quebraram os instrumentos de divertimento dos ditos Pretos, reduzindo tudo a cinza...como se esta terra não tivesse Governo, nem BISPO, nem Ministros. E concluía que o "despotismo" não podia constituir regra de conduta e que o Ouvidor soltasse quanto antes os preto apreendidos.
Em outra carta (1781) cita nominalmente um dos Religiosos Barbadinhos que tomou parte na missão nada cristã de quebrar violentamente camarinhas e instrumentos dos pretos, quando não cabeças de africanos. Cita-o nominalmente e faz-lhe o retrato psicológico:
chamava-se frei Constantino de Parma e era nada mais nada menos do que o próprio Prefeito,
isto é, o superior dos Capuchinhos (ou vulgarmente Barbadinhos) Italianos do Convento da Penha. Pretendia ele então partir para Lisboa, levando consigo, para "dispor" (isto é, negociar),
algumas caixas de açúcar "que diz são de esmolas ao seu Hospício". Mas "os seus mesmos
religiosos" não confiavam no zelo do Prefeito pelas caixas de açúcar e José César de Menezes
escrevia ao secretário dos Domínios Ultramarinos, Martinho de Melo e Castro, "que os seus
mesmos desconfiam tanto, que algum me rogou lhe não desse licença (para viajar), por não
suceder talvez com este o mesmo que aconteceu antes com outro tal de Angola, não há muitos
anos, pois espoliou os mesmos altares de sua Igreja e se embarcou com toda a prata e Castiçais
e Alampadas que vendeu e consumiu". Tudo justificava o receio dos demais Barbadinhos, pois.
Constantino era "homem de gênio ardente, revoltoso e falso e tanto mais perigoso quanto é
mais dissimulado e de um exterior que sabe bem a hipocrisia". Era ele o "famoso Zelador que
promoveu a história dos batuques dos negro: havendo-se com intrigas indignas, assim aqui
como nessa Corte". As "intrigas indignas" representaram sério risco para o governador, pois parece que foi da iniciativa do Capuchinho a queixa que contra José César de Menezes foi levada ao Tribunal da Inquisição. Este teve que escrever longa carta explicativa ao presidente do "Santo Tribunal" que então (1780) era o Arcebispo da Lacedemônia, a qual está também incluída em um dos livros de cópia da correspondência referida. José César acusa o recebimento da carta do
Arcebispo, "na qual em substância me recomenda V. Exa. queira eu aplicar-me a erradicar o
depravado e abominável costume que têm nesta terra os Pretos de dançar; e também empregue
a minha proteção a respeito dos Missionários que publicamente repreendem e detestam aquela
abominação". Respondendo, diz que "a recomendação de V. Exa. me parece fundada em notícias que se não verificam", acrescentando que "é custoso proibir o divertimento de uns homens penosamente trabalhados, que nada conservam nas tais danças dos seus ritos gentílicos, como falsamente se representou a V. Exa., pois não é verossímil que estando aqui um Bispo, tantos Párocos e Prelados e tantos Missionários, como tantos Antecessores meus, nenhum deles achasse razão para se proibirem as tais danças". Os africanos "mantidos em um cativeiro pesado desesperariam, e se não tivessem no domingo aquele divertimento se lançariam a distúrbios mais sensíveis se lh'os não permitissem, como sucedeu nos tempos antigos a um dos meus Antecessores, não porque usassem nas danças dos seus ritos que se lhes acumulam, mas só pela bulha e algazarra que fazem; e estas danças as fazem fora desta Praça (Recife), junto aos seus arrabaldes". Acentuando que tem o "coração, inteiramente católico", diz porém: "Nunca consentirei que os Missionários usem da força em lugar da persuasão", pois "a sua obrigação e
Page 3 emprego deve ser o de instruir-nos não só nos pontos da Fé, senão na humildade e mansidão cristã". Entretanto, com os pretos agiram violentamente "uns Frades Barbadinhos, de novo chegados dessa Corte, coligados com dois clérigos": "lançaram-se pelas casas onde moravam os negros, que guardavam os instrumentos das danças e os entraram a quebrar". E o furor continuou também contra outros instrumentos de música: "Depois foram os ditos Padres à casa de uma mulher casada que estava tocando em uma cítara e lh'a quebraram". Mas "representando-m'o esta, repreendi os Padres Missionários e os clérigos", tendo o Governador
mandado indenizar "o desmancho dos instrumentos". José César de Menezes deu conhecimento de tudo ao secretário dos Domínios Ultramarinos, Martinho de Mello e Castro (1780), enviando-lhe cópia da carta que escrevera ao Tribunal do Santo Ofício. No Reino foi pedido a respeito o parecer do Conde de Povolide, que já governara Pernambuco, e ele na sua informação (da qual se conserva cópia na documentação da época), faz distinguir as "danças" dos pretos, nas que considerava de divertimento (as quais embora "pouco inocentes não as considero dignas de total reprovação") e nas que "se devem inteiramente reprovar como supersticiosas e gentílicas".
Com base no parecer do Conde, ordenou a Rainha de Portugal a José César de Menezes
que não permitisse "por modo algum as danças desta última qualidade; e quanto as outras,
ainda que possam ser toleradas, com o fim de evitar com este menor mal outros males maiores,
deve Vossa Senhoria, contudo, usar de todos os meios suaves para ir desterrando pouco a
pouco um divertimento tão contrário aos bons costumes". Cumpridor exato das ordens régias, como era o governador, é provável que date do seu governo o início da repressão policial dos tais "ritos gentílicos" dos africanos, a cujo propósito conhece-se também o parecer de outro governador de Pernambuco, Caetano Pinto de Miranda Montenegro, que repreendeu em longo ofício (1815) o Ouvidor de Olinda, Antônio Cartas de Andrade Machado e Silva, pela sua atitude de condescendência para com os negros e os seus "ritos".
Com fases em que a completa liberdade se substituiu ao mais bárbaro terrorismo policial, tiveram as sobrevivências dos cultos franciscanos em Pernambuco oportunidade de serem
estudadas e cientificamente controladas por antropologistas, psicólogos sociais e psiquiatras há
cerca de vinte anos, através das atividades de serviços de Higiene Mental da Assistência a
Psicopatas, então dirigida pelo prof. Ulysses Pernambucano. As conclusões a que pôde chegar
este grupo de cientistas sociais evidenciam o completo fracasso da repressão policial às seitas
africanas
em comparação com processos lentos, mas cientificamente corretos, indicados pela
Sociologia e pela Antropologia, para solução do problema representado por essas sobrevivências inovasse, como também pelo antiquíssimo costume em que se achavam, facultado pelos meus Exmos. antecessores e aprovado por todo o povo desta Praça.
FONTE: MELLO, José Antonio Gonsalves de. Diario de Pernambuco. Recife, 22 jan. 1950. http://www.fgf.org.br/bvjagm

http://bvjagm.fgf.org.br/obra/Imprensa/030404-00010.pdf
livro Tempo de Jornal, 1998.

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